[Escravo Fiel e Prudente] Quem realmente é?

Nesta série de artigos analisaremos uma doutrina que é fundamental para todas as Testemunhas de Jeová e que serve como base para toda a autoridade e controle mental que sua liderança exerce em todo o mundo. Nos referimos à identidade do “servo, ou escravo, fiel e prudente” citado por Jesus em Mateus 24:45.

“Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o Senhor constituiu sobre a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo que o Senhor, quando vier, achar servindo assim. Em verdade vos digo que o porá sobre todos os seus bens.” – Mateus 24:45 – ARC

Escravo Fiel

Antes de iniciarmos a análise deste versículo, é essencial que verifiquemos como este entendimento das Testemunhas de Jeová surgiu e como ele foi evoluindo durante o tempo.

O escravo através dos anos

Logo nos primeiros anos de existência, os Estudantes da Bíblia, como eram então conhecidas as Testemunhas de Jeová, entendiam que a autoridade clerical excessiva, não deveria ser exercida sobre a igreja e que todos os membros do corpo de Cristo, faziam parte deste escravo citado por em ele em sua parábola. Sobre isso, a revista “A Torre de Vigia de Sião”, de outubro/novembro de 1891, dizia o seguinte: “Acreditamos que cada membro do corpo de Cristo está envolvido no trabalho abençoado, direta ou indiretamente de fornecer alimento, no devido tempo, à família da fé. Quem é, pois, o servo fiel e prudente, a quem p Senhor confiou os seus conservos, para dar-lhes o sustento a seu tempo? Não é o pequeno rebanho de servos consagrados que cumprem fielmente seus votos de consagração, o corpo de Cristo? E não é todo o corpo, de forma individual e coletivamente, fornecendo o alimento no tempo apropriado à família da fé?” – A Torre de Vigia de Sião e Arauto da Presença de Cristo – outubro/novembro de 1891 – página 1291 (volume encadernado – Em inglês)

Notem que bem no início, no ano de 1981, apenas alguns anos após a formação do grupo, os Estudantes da Bíblia acreditavam que todos cristão tem a comissão de alimentar espiritualmente a outros, sejam eles seus irmãos na fé, ou ainda não façam parte da igreja de Cristo, como é o entendimento da maioria dos eruditos que estudam este assunto.

No ano de 1889, no livro “Estudos das Escrituras”, Russel voltou a abordar o assunto desta forma: “O precedente, cuidadosamente examinado, nos ensina claramente que no fim desta era haverá uma classe negando que o Senhor esteja presente. Não negando que Ele venha em algum momento, mas que Ele já tenha vindo, e que por espancar e se opor duramente a seus co-escravos, que devem, portanto, estar ensinando o oposto, que o Senhor veio. Qual deles é o escravo fiel e prudente e qual deles está no erro, é claramente indicado por nosso Senhor.”

Embora ainda entendessem que o escravo era formado por uma classe de pessoas e não por apenas um indivíduo, neste ponto notamos que já se inicia uma visão mais exclusivista, na qual apenas aqueles que ensinavam que o Senhor já estava presente na ocasião, fariam parte do escravo. Este ponto é de extrema importância, uma vez que os Estudantes da Bíblia acreditavam que Cristo já estava presente desde de 1874. A maioria das demais denominação, senão todas, ensinavam, e ainda ensinam, que a vinda de Cristo se dará no futuro.

Em abril de 1890, a revista Torre de Vigia de Sião, faz o seguinte comentário: “Desde que a igreja teve uma existência, Deus escolheu alguns de seu meio, como servos especiais do corpo. Alguns que possuíam capacidade de ensino especial e abençoado é aquele escravo que, quando o mestre retornar, é encontrado fornecendo, no devido tempo, alimento à família da fé.”

Aqui já notamos que o entendimento foi modificado para restringir ainda mais o número daqueles que, segundo o entendimento então vigente, compunham o escravo fiel e prudente. Embora não haja uma afirmação clara de que o escravo se personalizava em Russel, os membros do grupo podiam chegar facilmente a esta interpretação, uma vez que ele era o principal, senão o único responsável pelas publicações da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados.

Continuando em nossa análise deste ensino, chegamos ao ano de 1895, quando a revista “A Torre de Vigia de Sião”, de 1º de abril, na página 1797, dizia: “Bem-aventurado é aquele servo. No entanto, não é suficiente que sejam servos do Senhor, porque há muitos que servem ativamente, cujas obras serão queimadas durante as provas de fogo as quais serão submetidas neste dia do Senhor. Mas devem ser sábios e fiéis. Servos que estudam para se mostrarem aprovados por Deus”. Novamente, não se identifica o escravo como uma única pessoa, mas como um grupo que estivesse estudando para se mostrar dignos da aprovação de Deus.

Menos de um ano após a publicação deste artigo, no número de 1º de março de 1896, a mesma revista trouxe o seguinte argumento sobre o assunto, num artigo intitulado “Aquele Escravo”: “Em nosso exame daquele texto, demos a impressão de que tratamos o termo “aquele escravo” como se o Espírito Santo tivesse errado ao dizer “aquele escravo”, quando significa escravos, no plural e nós o aplicamos a todos os servos de Deus. Desde então, temos recebido de vários lugares objeções a essa aplicação tão ampla e a sugestão de que seria errado permitir que a modéstia ou qualquer outra consideração, boa ou ruim, afete nosso julgamento na exposição da palavra inspirada; e com este ponto de vista concordamos.” Interessante notar que, embora não tenha assumido diretamente a identidade do “Escravo Fiel e Prudente”, Russel, ao comentar o artigo de 1895, deixa claro que concorda com a opinião de alguns leitores de que a identificação deste escravo se aplicaria em um único representante, fosse ele uma pessoa, ou uma organização. Mais uma vez, todos os outros cristãos foram alijados da possibilidade de fazer parte do Escravo Fiel e Prudente.

Algum tempo depois, Maria Russel esposa do presidente da sociedade torre de Vigia, escreveu questionando o fato de que não houve uma identificação clara de quem ocuparia o lugar “daquele escravo” e se o termo poderia ser aplicado à revista “Torre de Vigia de Sião” ou à “Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados”. Em resposta a este questionamento, Russel respondeu que a omissão fora proposital, e que o objetivo do artigo era deixar claro que o termo se referia a um único servo, “animado ou inanimado”, que seria usado por Deus para dirigir e orientar o seu povo na Terra. Desta forma, Russel abriu precedente para o entendimento de que o escravo poderia se referir à própria revista ou à Sociedade Torre de Vigia.

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Este entendimento perdurou por alguns anos, inclusive após a morte de Russel, que ocorreu em 31 de outubro de 1916, e assunção de Joseph Franklin Rutherford à presidência da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados.

No número de 1º de dezembro de 1916, a revista a Sentinela traz a informação de que milhares de leitores dos escritos de Russel acreditavam que ele próprio desempenhava o papel do Escravo e que, embora não o tenha admitido publicamente por modéstia, o fundador da Sociedade Torre de Vigia, admitira esta possibilidade, em conversas particulares.

Ainda sobre este ponto, o livro “Proclamadores”, na página 626(em português) diz o seguinte: “Charles Taze Russell, era o “servo fiel e prudente” predito por Jesus em Mateus 24:45-47 (Almeida), servo este que distribuiria alimento espiritual à família da fé. Em especial depois de sua morte, a própria revista WatchTower expressou esse conceito por vários anos. Em vista do destacado papel que o irmão Russell desempenhara, parecia aos Estudantes da Bíblia daquela época que este era o caso. Ele não promoveu pessoalmente essa ideia, mas reconheceu a aparente razoabilidade dos argumentos dos que a defendiam.”

Diante de todas as evidências apresentadas até aqui, vemos claramente que, apenas nos primeiros 46 anos desde sua fundação, as Testemunhas de Jeová mudaram de doutrina, ao menos quatro vezes.

As mudanças de entendimento não pararam por aí, pois sendo Russel o Escravo Fiel de Discreto, como Rutherford poderia justificar todas as mudanças que estavam ocorrendo na administração da Sociedade Torre de Vigia, inclusive com a expulsão de quatro diretores que eram contemporâneos do pastor Russel? Este pequeno problema seria resolvido no ano de 1927, quando a revista “A Sentinela” de 15 de fevereiro, trouxe o entendimento de que o Escravo Fiel e Discreto era composto pela totalidade dos cristãos ungidos, ainda vivos. Interessante que ainda neste artigo, a revista identifica como “Escravo Mau”, todos os que se negaram a submeter à liderança ditatorial de Rutherford. Uma outra vantagem deste entendimento, é que o próprio Rutherford se declarava ungido sendo, portanto, membro do Escravo Fiel e Discreto.

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Este entendimento perdurou por oitenta e cinco anos, até que em 2012, durante a reunião anual da Sociedade Torre de Vigia, quando o Escravo foi identificado como apenas os membros do corpo governante das Testemunhas de Jeová. A Sentinela de julho de 2013, tornou este entendimento oficial, ao dizer o seguinte, no artigo intitulado “Quem é Realmente o Escravo Fiel e Discreto?”, no parágrafo 10: “Quem, então, é o escravo fiel e discreto? Em harmonia com o padrão de Jesus de alimentar muitos pelas mãos de poucos, esse escravo se compõe de um pequeno grupo de irmãos ungidos diretamente envolvidos na preparação e distribuição de alimento espiritual durante a presença de Cristo. No decorrer dos últimos dias, os irmãos ungidos que compõem o escravo fiel têm servido juntos na sede mundial. Em décadas recentes, esse escravo tem sido composto do Corpo Governante das Testemunhas de Jeová. Note, porém, que embora o escravo seja composto de mais de uma pessoa ele é descrito na ilustração de Jesus como apenas um escravo. Assim, as decisões do Corpo Governante são tomadas coletivamente.”

É interessante notar que esta mudança foi um retorno ao entendimento que fora apresentado em 1890, o qual limitava os membros do escravo a um pequeno grupo de ungidos que estavam envolvidos em produzir a revista “A Torre de Vigia de Sião”. Para os leitores que nunca estiveram associados às Testemunhas de Jeová, tal situação pode parecer estranha. Mas para aqueles que foram membros da seita durante vários anos, é comum que a “verdade” seja modificada rotineiramente, muitas vezes havendo um retorno a um entendimento já descartado no passado, como foi o caso aqui.

Após a apresentação de todos estes pontos, uma pergunta ainda persiste. Quem REALMENTE é o Escravo Fiel e Discreto, citado na parábola de Jesus?

Trataremos deste ponto no próximo artigo.

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